Entrevista do Papa Emérito sobre a crise na Igreja

04 07-2017
Entrevista do Papa Emérito sobre a crise na Igreja

Publicamos o texto integral da entrevista com Bento XVI contida no livro Per mezzo della fede. Dottrina della giustificazione ed esperienza di Dio nella predicazione della Chiesa e negli Esercizi Spirituali [Por meio da fé. Doutrina da justificação e experiência de Deus na pregação da Igreja e nos Exercícios Espirituais], editado pelo jesuíta Daniel Libanori (Cinisello Balsamo: Edizioni San Paolo, 2016, 208 páginas), no qual o Papa Emérito fala da centralidade da misericórdia na fé cristã.

A íntegra da conversa foi publicada pelo jornal L’Osservatore Romano, 16-04-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

Santidade, a questão posta este ano no quadro das jornadas de estudo (8-10 de outubro de 2015) promovidas pela Reitoria do Gesù, em Roma, é a da justificação pela fé. O último volume da sua Opera omnia (GS IV) evidencia a sua afirmação resoluta: “A fé cristã não é uma ideia, mas uma vida”. Comentando a célebre afirmação paulina (Rm 3, 28), o senhor falou, a esse respeito, de uma dupla transcendência: “A fé é um dom aos crentes comunicado através da Comunidade, que, de sua parte, é fruto do dom de Deus” (“Glaube ist Gabe durch die Gemeinschaft, die sich selbst gegeben wird”, GS TV; 512). Poderia explicar o que o senhor quis dizer com essa afirmação, levando em conta, naturalmente, o fato de que o objetivo dessas jornadas é esclarecer a teologia pastoral e vivificar a experiência espiritual dos fiéis?

Trata-se da questão: o que é a fé e como se chega a crer. Por um lado, a fé é um contato profundamente pessoal com Deus, que me toca no meu tecido mais íntimo e me coloca diante do Deus vivo, em absoluta imediaticidade, isto é, de modo que eu possa falar com Ele, amá-Lo e entrar em comunhão com Ele. Mas, ao mesmo tempo, essa realidade maximamente pessoal tem a ver inseparavelmente com a comunidade: faz parte da essência da fé o fato de me introduzir no nós dos filhos de Deus, na comunidade peregrina dos irmãos e das irmãs. A fé deriva da escuta (fides ex auditu), ensina-nos São Paulo.

A escuta, por sua vez, implica sempre um parceiro. A fé não é um produto da reflexão nem uma busca de penetrar nas profundezas do meu ser. Ambas as coisas podem estar presentes, mas elas continuam sendo insuficientes sem a escuta mediante a qual Deus, de fora, a partir de uma história por Ele mesmo criada, me interpela. Para que eu possa crer, eu preciso de testemunhas que encontraram Deus e O tornam acessível para mim.

No meu artigo sobre o batismo, eu falei da dupla transcendência da comunidade, fazendo, assim, emergir, uma vez mais, um elemento importante: a comunidade de fé não se cria por si só. Ela não é uma assembleia de homens que têm ideias em comum e que decidem operar pela difusão de tais ideias. Então, tudo estaria baseado em uma decisão própria e, em última análise, no princípio da maioria, isto é, no fim das contas, seria opinião humana. Uma Igreja assim construída não pode ser, para mim, garantia da vida eterna, nem exigir de mim decisões que me fazem sofrer e que estão em contraste com os meus desejos. Não, a Igreja não foi feita por si mesma, foi criada por Deus e é continuamente formada por Ele. Isso encontra a sua expressão nos sacramentos, sobretudo no do batismo: eu entro na Igreja não com um ato burocrático, mas mediante o sacramento. E isso equivale a dizer que eu sou acolhido em uma comunidade que não se originou de si mesma e que se projeta para além de si mesma.

A pastoral que pretende formar a experiência espiritual dos fiéis deve proceder a partir desses dados fundamentais. É necessário que ela abandone a ideia de uma Igreja que produz a si mesma e é necessário enfatizar que a Igreja se torna comunidade na comunhão do corpo de Cristo. Ela deve introduzir ao encontro com Jesus Cristo e levar à Sua presença no sacramento.

Quando o senhor era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, comentando a Declaração Conjunta da Igreja Católica e da Federação Luterana Mundial sobre a doutrina da justificação do dia 31 de outubro de 1999, o senhor evidenciou uma diferença de mentalidade em relação a Lutero e à questão da salvação e da bem-aventurança da forma como ele a colocava. A experiência religiosa de Lutero era dominada pelo terror diante da cólera de Deus, sentimento bastante estranho ao homem moderno, marcado mais pela ausência de Deus (basta reler o seu artigo escrito para a revista Communio no ano 2000). A doutrina de Paulo da justificação pela fé, nesse novo contexto, pode chegar à experiência “religiosa” ou, ao menos, à experiência “elementar” dos nossos contemporâneos?

Acima de tudo, quero sublinhar mais uma vez o que eu escrevia na Communio no ano 2000, sobre a problemática da justificação. Para o homem de hoje, em relação ao tempo de Lutero e à perspectiva clássica da fé cristã, as coisas, em certo sentido, se inverteram, ou seja, não é mais o homem que crê precisar da justificação em relação a Deus, mas ele é do parecer de que Deus é que deve se justificar por causa de todas as coisas horrendas presentes no mundo e diante da miséria do ser humano, todas coisas que, em última instância, dependeriam d’Ele.

A esse propósito, acho indicativo o fato de que um teólogo católico assuma de modo até mesmo direto e formal tal inversão: Cristo não teria sofrido pelos pecados dos homens, mas, ao contrário, por assim dizer, teria apagado as culpas de Deus. Mesmo que, por enquanto, a maior parte dos cristãos não compartilha uma inversão tão drástica da nossa fé, pode-se dizer que tudo isso faz emergir uma tendência de fundo do nosso tempo.

Quando Johann Baptist Metz defende que a teologia hoje deve ser “sensível à teodiceia” (theodizeeempfindlich), isso ressalta o mesmo problema de modo positivo. Mesmo prescindindo de uma contestação tão radical da visão eclesial sobre a relação entre Deus e o homem, o homem de hoje, de modo totalmente geral, tem a sensação de que Deus não pode deixar a maior parte da humanidade ir à perdição. Nesse sentido, a preocupação com a salvação típica de antigamente quase desapareceu.

No entanto, a meu ver, continua existindo, de outro modo, a percepção de que nós precisamos da graça e do perdão. Para mim, é um “sinal dos tempos” o fato de que a ideia da misericórdia de Deus se torne cada vez mais central e dominante – a partir da Ir. Faustina, cujas visões, de vários modos, refletem profundamente a imagem de Deus própria do homem de hoje e o seu desejo da bondade divina. O Papa João Paulo II estava profundamente impregnado por esse impulso, embora isso nem sempre emergisse de modo explícito.

Mas certamente não é por acaso que o seu último livro, que viu a luz imediatamente antes da sua morte, fala da misericórdia de Deus. A partir das experiências nas quais, desde os primeiros anos de vida, ele chegou a constatar toda a crueldade dos homens, ele afirma que a misericórdia é a única verdadeira e última reação eficaz contra a potência do mal.

Só onde há misericórdia acaba a crueldade, acabam o mal e a violência. O Papa Francisco encontra-se totalmente de acordo com essa linha. A sua prática pastoral se expressa justamente no fato de que ele nos fala continuamente da misericórdia de Deus. É a misericórdia aquilo que nos move em direção a Deus, enquanto a justiça nos assusta em relação a Ele. A meu ver, isso ressalta que, sob o verniz da segurança de si e da própria justiça, o homem de hoje esconde um profundo conhecimento das suas feridas e da sua indignidade diante de Deus. Ele está à espera da misericórdia.

Certamente, não é por acaso que a parábola do bom samaritano seja particularmente atraente para os contemporâneos. E não só porque nela está fortemente sublinhado o componente social da existência cristã, nem só porque nela o samaritano, o homem não religioso, em relação aos representantes da religião, aparece, por assim dizer, como aquele que age de modo verdadeiramente conforme a Deus, enquanto os representantes oficiais da religião se tornaram, por assim dizer, imunes em relação a Deus.

É claro que isso agrada ao homem moderno. Mas me parece igualmente importante, no entanto, que os homens, no seu íntimo, esperem que o samaritano venha em sua ajuda, que ele se curve sobre eles, derrame óleo sobre as suas feridas, cuide deles e os proteja. Em última análise, eles sabem que precisam da misericórdia de Deus e da sua delicadeza.

Na dureza do mundo tecnicizado em que os sentimentos não importam mais nada, aumenta, porém, a expectativa de um amor salvífico que seja dado gratuitamente. Parece-me que, no tema da misericórdia divina, expressa-se de modo novo aquilo que significa a justificação pela fé. A partir da misericórdia de Deus, que todos buscam, é possível também hoje interpretar, desde o início, o núcleo fundamental da doutrina da justificação e fazer com que ele apareça em toda a sua relevância.

Quando Anselmo diz que o Cristo devia morrer na cruz para reparar a ofensa infinita que tinha sido feita a Deus e, assim, restaurar a ordem quebrada, ele usa uma linguagem dificilmente aceitável pelo homem moderno (cfr. GS IV 215.ss). Expressando-se desse modo, corre-se o risco de projetar sobre Deus uma imagem de um Deus de cólera, aferrado diante do pecado do homem, por [um estado afetivo] sentimentos de violência e de agressividade comparáveis àquilo que nós mesmos podemos experimentar. Como é possível falar da justiça de Deus sem correr o risco de minar a certeza, já consolidada junto aos fiéis, de que [o Deus] dos cristãos é um Deus “rico em misericórdia” (Ef 2, 4)?

A conceitualidade de Santo Anselmo se tornou hoje, para nós, certamente incompreensível. É nossa tarefa tentar entender de modo novo a verdade que se esconde por trás desse modo de se expressar. De minha parte, formulo três pontos de vista sobre esse ponto:

a) A contraposição entre o Pai, que insiste de modo absoluto na justiça, e o Filho que obedece ao Pai e, obedecendo, aceita a cruel exigência da justiça, não é apenas incompreensível hoje, mas, a partir da teologia trinitária, é, em si mesma, totalmente errada. O Pai e o Filho são uma coisa só, e, portanto, a Sua vontade é ab intrinseco uma só. Quando o Filho, no Jardim das Oliveiras, luta com a vontade do Pai, não se trata do fato de que ele deva aceitar para si uma cruel disposição de Deus, mas sim do fato de atrair a humanidade para dentro da vontade de Deus. Deveremos voltar ainda, em seguida, sobre a relação das duas vontades do Pai e do Filho.

b) Mas, então, por que a cruz e a expiação? De algum modo, hoje, nas contorções do pensamento moderno de que falamos acima, a resposta a tais perguntas pode ser formulada de um modo novo. Coloquemo-nos diante da incrível quantidade suja de mal, de violência, de mentira, de ódio, de crueldade e de soberba que infectam e arruínam o mundo inteiro. Essa massa de mal não pode ser simplesmente declarada como inexistente, nem mesmo por parte de Deus. Ela deve ser depurada, reelaborada e superada. O antigo Israel estava convencido de que o sacrifício cotidiano pelos pecados e, sobretudo, a grande liturgia do Dia da Expiação (Yom-Kippur) eram necessários como contrapeso para a massa de mal presente no mundo e que só mediante tal reequilíbrio o mundo poderia, por assim dizer, continuar suportável. Assim que desapareceram os sacrifícios no templo, foi necessário perguntar o que podia ser contraposto às potências superiores do mal, como encontrar, de algum modo, um contrapeso. Os cristãos sabiam que o templo destruído havia sido substituído pelo corpo ressuscitado do Senhor crucificado e que, no Seu amor radical e incomensurável, havia sido criado um contrapeso à incomensurável presença do mal. Ou, melhor, eles sabiam que as ofertas apresentadas até então só podiam ser concebidas como gesto de desejo de um real contrapeso. Eles também sabiam que, diante do excessivo poder do mal, só um amor infinito podia bastar, só uma expiação infinita. Eles sabiam que o Cristo crucificado e ressuscitado é um poder que pode combater o do mal e que salva o mundo. E, sobre essas bases, também puderam entender o sentido dos seus próprios sofrimentos como inseridas no amor sofredor de Cristo e como parte da potência redentora de tal amor. Acima, eu citava aquele teólogo para o qual Deus teve que sofrer pelas Suas culpas em relação ao mundo; ora, dada essa inversão da perspectiva, emerge a seguinte verdade: Deus simplesmente não pode deixar como está a massa do mal que deriva da liberdade que Ele mesmo concedeu. Só Ele, vindo a fazer parte do sofrimento do mundo, pode redimir o mundo.

c) Sobre essas bases, torna-se mais perspícua a relação entre o Pai e o Filho. Reproduzo, sobre o assunto, uma passagem tirada do livro de De Lubac sobre Orígenes, que me parece muito claro: “O Redentor entrou no mundo por compaixão pelo gênero humano. Ele tomou sobre Si as nossas passiones antes ainda de ser crucificado, ou, melhor, até mesmo antes de se abaixar para assumir a nossa carne: se não as tivesse provado antes Ele não teria vindo tomar parte da nossa vida humana. Mas qual foi esse sofrimento que Ele suportou com antecedência por nós? Foi a paixão do amor. Mas o Pai mesmo, o Deus do universo, Ele que é superabundante de longanimidade, paciência, misericórdia e compaixão, não sofre, também Ele, em certo sentido? ‘O Senhor, teu Deus, de fato, tomou sobre si os teus costumes como aquele que toma sobre si o seu filho’ (Deuteronômio 1, 31). Deus, portanto, toma sobre si os nossos costumes como o Filho de Deus toma sobre si os nossos sofrimentos. O próprio Pai não é sem paixão! Se Ele é invocado, então Ele conhece misericórdia e compaixão. Ele percebe um sofrimento de amor (Homilias sobre Ezequiel 6, 6)”.

Em algumas regiões da Alemanha, houve uma devoção muito comovente que contemplava die Not Gottes (“a indigência de Deus”). De minha parte, isso me faz passar diante dos meus olhos uma imagem impressionante que representa o Pai sofredor, que, como Pai, compartilha interiormente os sofrimentos do Filho. E também a imagem do “trono de graça” faz parte dessa devoção: o Pai sustenta a cruz e o crucificado, inclina-se amorosamente sobre ele e, por outro lado, por assim dizer, está junto sobre a cruz. Assim, de modo grandioso e puro, percebe-se ali o ue significam a misericórdia de Deus e a participação de Deus ao sofrimento do homem. Não se trata de uma justiça cruel, não já do fanatismo do Pai, mas sim da verdade e da realidade da criação: da verdadeira íntima superação do mal que, em última análise, pode se realizar apenas no sofrimento do amor.

Nos Exercícios Espirituais, Inácio de Loyola não utiliza as imagens vetero-testamentárias da vingança, ao contrário de Paulo (como se percebe na segunda carta aos Tessalonicenses). No entanto, ele convida a contemplar como os homens, até a Encarnação, “desciam ao inferno” e a considerar o exemplo dos “inúmeros outros que lá acabaram por muito menos pecados do que aqueles que eu cometi”. É nesse espírito que São Francisco Xavier viveu a sua própria atividade pastoral, convencido de ter que tentar salvar do terrível destino da perdição eterna o máximo de “infiéis” possível. Pode-se dizer que, nesse ponto, nas últimas décadas, houve uma espécie de “desenvolvimento do dogma”, que o Catecismo absolutamente deve levar em conta?

Não há dúvida de que, nesse ponto, estamos diante de uma profunda evolução do dogma. Enquanto os Padres e os teólogos da Idade Média ainda podiam ser da opinião de que, na substância, todo o gênero humano havia se tornado católico e que o paganismo existia quase apenas nas margens, a descoberta do Novo Mundo, no início da era moderna, mudou de maneira radical as perspectivas.

Na segunda metade do século passado, afirmou-se completamente a consciência de que Deus não pode deixar todos os não batizados irem para a perdição e que mesmo uma felicidade puramente natural para eles não representa uma resposta real para a questão da existência humana.

Se é verdade que os grandes missionários do século XVI ainda estavam convencidos de que aqueles que não eram batizados estavam perdidos para sempre, e isso explica o seu empenho missionário, na Igreja Católica depois do Concílio Vaticano II, tal convicção foi definitivamente abandonada. Disso derivou uma dupla e profunda crise. Por um lado, isso parece remover toda motivação a um futuro empenho missionário. Por que se deveria tentar convencer as pessoas a aceitarem a fé cristã quando elas podem se salvar mesmo sem ela? Mas para os cristãos também emergiu uma questão: tornou-se incerta e problemática a obrigatoriedade da fé e da sua forma de vida.

Se há quem pode se salvar mesmo de outras maneiras, não é mais evidente, no fim das contas, por que o próprio cristão está ligado às exigências da fé cristã e à sua moral. Mas se fé e salvação não são mais interdependentes, mesmo a fé se torna imotivada. Nos últimos tempos, foram formuladas diversas tentativas com o objetivo de conciliar a necessidade universal da fé cristã com a possibilidade de se salvar sem ela.

Recordo aqui duas delas: acima de tudo, a tese bem conhecida dos cristãos anônimos de Karl Rahner. Nela, defende-se que o ato-base essencial da existência cristã, que é decisivo em ordem à salvação, na estrutura transcendental da nossa consciência, consiste na abertura ao totalmente outro, em direção à unidade com Deus. A fé cristã teria feito emergir à consciência aquilo que é estrutural no homem como tal. Por isso, quando o homem se aceita no seu ser essencial, ele cumpre o essencial do ser cristão, mesmo sem conhecê-lo de modo conceitual.

O cristão, portanto, coincide com o humano e, nesse sentido, é cristão todo homem que aceita a si mesmo, mesmo que não saiba disso. É verdade que essa teoria é fascinante, mas reduz o próprio cristianismo a uma pura apresentação consciente daquilo que o ser humano é em si e, portanto, ignora o drama da mudança e da renovação que é central no cristianismo.

Ainda menos aceitável é a solução proposta pelas teorias pluralistas da religião, para as quais todas as religiões, cada um ao seu modo, seriam vias de salvação e, nesse sentido, nos seus efeitos, devem ser consideradas como equivalentes. A crítica da religião do tipo daquela exercida pelo Antigo Testamento, pelo Novo Testamento e pela Igreja primitiva é essencialmente mais realista, mais concreta e mais verdadeira no seu exame das várias religiões. Uma recepção tão simplista não é proporcional à grandeza da problemática.

Lembremos, por último, especialmente Henri de Lubac e, com ele, alguns outros teólogos que fizeram força sobre o conceito de substituição vicária. Para eles, a preexistência de Cristo seria expressão da figura fundamental da existência cristã e da Igreja como tal. É verdade que, assim, o problema não está totalmente resolvido, mas me parece que essa, na realidade, é a intuição essencial que, assim, toca a existência do indivíduo cristão.

Cristo, como único, era e é para todos os cristãos, que, na grandiosa imagem de Paulo, constituem o Seu corpo neste mundo, participam de tal ser-para [essere-per]. Não somos cristãos, por assim dizer, para nós mesmo, mas sim, com Cristo, para os outros. Isso não significa uma espécie de bilhete especial para entrar na bem-aventurança eterna, mas sim a vocação para construir o conjunto, o todo.

Aquilo de que a pessoa humana precisa em ordem à salvação é a íntima abertura em relação a Deus, a íntima expectativa e adesão a Ele, e isso significa, vice-versa, que nós, junto com o Senhor que encontramos, vamos rumo aos outros e tentamos tornar visível a eles o advento de Deus em Cristo.

É possível explicar esse “ser para” também de um modo um pouco mais abstrato. É importante para a humanidade que, nela, haja verdade, que ela seja acreditada e praticada. Que se sofra por ela. Que se ame. Essas realidades penetram com a sua luz dentro do mundo como tal e o sustentam. Eu acho que, nesta presente situação, se torna para nós cada vez mais claro e compreensível aquilo que o Senhor diz a Abraão, isto é, que dez justos teriam sido suficientes para fazer sobreviver uma cidade, mas que ela destrói a si mesma se esse pequeno número não é alcançado. É claro que devemos refletir mais sobre toda a questão.

Aos olhos de muitos “laicos”, marcados pelo ateísmo dos séculos XIX e XX, o senhor notou, é mais Deus – se é que existe – e não o homem que deveria responder pelas injustiças, pelo sofrimento dos inocentes, pelo cinismo do poder a que estamos assistindo, impotentes, no mundo e na história universal (ver Spe salvi, n. 42)… No seu livro Jesus de Nazaré, o senhor ecoa aquilo que, para eles – e para nós –, é um escândalo: “A realidade da injustiça, do mal, não pode ser simplesmente ignorada, simplesmente posta de lado. Ela deve absolutamente ser superada e vencida. Só assim há verdadeiramente misericórdia” (Jesus de Nazaré, p. 153, citando 2Timóteo 2, 13). O sacramento da confissão é, e em que maneira, um dos lugares nos quais pode ocorrer uma “reparação” do mal cometido?

Eu já tentei expor no seu conjunto os pontos fundamentais relativos a esse problema ao responder a terceira questão. O contrapeso ao domínio do mal só pode consistir, em primeiro lugar, no amor divino-humano de Jesus Cristo que é sempre maior do que toda possível potência do mal. Mas é necessário que nós nos insiramos nessa resposta que Deus nos dá mediante Jesus Cristo. Mesmo que o indivíduo seja responsável por um fragmento de mal e, portanto, seja cúmplice do seu poder, junto com Cristo, ele pode, no entanto, “completar o que ainda falta aos seus sofrimentos” (cfr. Colossenses 1, 24).

O sacramento da penitência, nesse campo, certamente tem um papel importante. Isso significa que nós nos deixamos sempre moldar e transformar por Cristo e que passamos continuamente do lado de quem destrói para o de quem salva.

Fonte: site IHU

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